terça-feira, setembro 24, 2013

O Fenómeno Top Gear

Humor, dedicação e honestidade poderão muito bem ser os três adjectivos que melhor definem a razão para o sucesso tão improvável quanto merecido daquele que todos esperavam fosse apenas mais um programa televisivo sobre carros. E que, verdade seja dita, assim o foi de 1977 a 2002, ano em que sofreu uma reformulação massiva a todos os níveis, transformando-o no que é hoje: nada mais, nada menos, do que a série de televisão mais pirateada em todo o mundo, mesmo sendo transmitida em mais de uma centena e meia de países, com uma audiência global estimada de 350 milhões de telespectadores.

Descrito pelos seus grandes mentores - o trio de apresentadores Jeremy Clarkson, Richard Hammond e James May - como "aventuras de homens idiotas com carros idiotas", a verdade é que o programa da britânica BBC2 tornou, em pouco mais de uma década, três jornalistas especializados em automobilismo em verdadeiras super estrelas planetárias, ao nível daqueles que moram lá para os lados de Hollywood e que muitas vezes são convidados para participar num dos mais adorados segmentos do programa.

Esqueçam tudo o que aprenderam sobre segurança rodoviária ou análise pormenorizada de carros. BMWs? Clarkson detesta-os. Se conduzir não beba? Quase sempre, mas o Polo Norte revelou-se uma quase boa excepção, ou não precisassem eles de se aquecer com qualquer coisa - o pior foram as multas que a estação teve que pagar pelo comportamento socialmente inadequado. Segurança acima de tudo? Quase nunca, seja de jipe no "Caminho da Morte" na América do Sul, de carripana num safari africano ou em circuitos em que carros, motas e helicópteros passam a poucos metros uns dos outros em alta velocidade. Que o diga Hammond, que passou vários meses hospitalizado devido a um traumatismo craniano resultante de um acidente a cerca de 506 km/h num carro de corridas drag.

Preocupações ambientais? Isso é para meninos. Nem o mais "verde" apreciador de um bom espectáculo televisivo conseguirá resistir a sentir-se alegremente culpado com as mais originais e divertidas sequências que a produção do Top Gear prepara para cada episódio. Episódios esses que custam, isoladamente, quase um milhão de euros, um valor recorde muito criticado por alguns devido ao actual contexto sócio-económico inglês, mas que ainda assim representa apenas parte dos lucros que a marca "Top Gear", nos seus mais variados formatos e franchises, gera.

E, admirem-se, Top Gear é também politicamente controverso. É raro o mês que passa sem que haja uma polémica que meta a BBC em problemas com as mais variadas entidades, seja pelas piadas machistas constantes sobre prostitutas, pelas provocações típicas de Clarkson - quase sempre com palavrões à mistura ou com farpas a membros do governo. Postura que lhe fez ganhar o respeito dos fãs e que, aliás, já lhe valeu cerca de cinquenta mil assinaturas numa petição que pretendia que o apresentador "com mau feitio" se candidatasse ao cargo de Primeiro Ministro. Cargo esse ocupado agora por Gordon Brown, uma das vítimas favoritas de Clarkson.

Mas nem só dos três apresentadores se fez o sucesso insofismável do programa. Longe estaria Clarkson de imaginar que a sua ideia de contratar um piloto profissional de corridas para o programa, de modo a consolidar de forma consistente - e espectacular, já agora - alguns dos segmentos pensados para a reinvenção do aborrecido magazine semanal da televisão britânica acabaria por se tornar, quase por acidente, num dos ingredientes chave e imagens de marca de Top Gear: o "The Stig". Tudo porque a produção não conseguiu encontrar um único piloto que fosse tão convincente a falar para as câmaras como a dominar a embraiagem e optou por torná-lo num herói mascarado, cuja identidade seria para sempre uma incógnita, protegida por um contrato altamente sigiloso. Até ao dia em que, farto de ver os colegas que davam a cara ganharem rios de massa com presenças, livros e participações especiais, Ben Collins, piloto inglês cujo currículo invejável conta com uma vitória nas famosas 24 Horas Le Mans, decidiu revelar-se como o homem de branco, lançando um auto-biografia que acabaria por tornar-se num dos livros mais vendidos do ano no Reino Unido, bem como ser usado como justa-causa para a produção do Top Gear terminar a sua ligação ao programa, disparando várias críticas ao piloto por ter quebrado um dos segredos mais bem guardados de sempre entre os media britânicos, que durante oito anos não conseguiram descobrir quem era o "The Stig". Mas a ele voltaremos mais à frente.

Actualmente na sua vigésima temporada moderna, "Top Gear" abandonou os aborrecidos estúdios dos anos oitenta e noventa como pano de fundo, tendo agora o seu próprio circuito de corridas, um antigo aeródromo usado durante a Segunda Guerra Mundial, que a produção do programa comprou ao Estado. Um hangar de reparação de aviões abandonado no aeródromo foi ainda reformulado para servir de escritórios e de estúdio para toda a equipa por detrás do fenómeno Top Gear. Uma hora de programa em vez da tradicional meia-hora que Clarkson, sozinho, teve direito durante anos e especiais regulares como "Star in a Reasonably Priced Car", "The Cool Wall", "The News", "Power Laps" ou a destruição de caravanas das mais diversas formas e feitos (sim, um piano a cair no tejadilho de uma caravana não a deixa em bom estado, podemos já adiantar) marcam este renascimento de Top Gear em 2002, que culminou com o recorde de uma década para um programa exibido na BBC entre 2001 e 2010: o último episódio da nona temporada alcançou uns estonteantes oito milhões de espectadores domésticos.

Entre especiais irresistíveis, com a tripla a atravessar o Texas com um carro repleto de marcações homossexuais ou a tentar alcançar o polo norte magnético num Toyota Hilux modificado para andar sobre gelo - e a entrarem no Guinness como os primeiros a alcançarem-no de carro - ou reportagens únicas como a que os conceituados "60 Minutos" da CBS norte-americana lhes dedicaram, a popularidade actual e crescente da série que há pouco mais de dez anos esteve em vias de ser cancelada é inequívoca. Porque Top Gear percebeu que a sua principal arma era a massificação e diversificação do seu público-alvo, transformando-se num blockbuster televisivo para todos os gostos, mesmo aqueles que, como eu, não ligavam patavina ao mundo automóvel. Porque não é preciso perceber ou gostar de carros para gostar de Top Gear. E é esse o trunfo que o diferencia de todos os outros.

2 comentários:

brain-mixer disse...

Demasiado bom para dizer em palavras... Relembro também o desafio de converter chaços velhos em limousines, a nossa Alfama como cenário, ou mesmo o carro dos Thunderbirds (sim, o rosa!) nas ruas estreitas da pequena vila...
Sucesso, a quanto obrigas.

Carlos M. Reis disse...

Um espectáculo ;)

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...