Stanley Kubrick nunca foi fã de falar da sua própria carreira - contam-se pelos dedos as entrevistas que deu fora do âmbito das promoções quase que obrigatórias de lançamento dos seus filmes -, quanto mais do trabalho e engenho dos seus colegas de profissão. Mas, em meados de 2013, a conceituada British Film Institute investigou décadas de declarações do cineasta e daqueles com quem trabalhou e lidou regularmente para oferecer ao mundo uma lista com os filmes e realizadores favoritos do falecido mestre, escolhas essas que permitiram perceber um pouco melhor as influências e o percurso cinematográfico de Kubrick. Para tal, muito contribuiu uma publicação da sua filha Katharina Kubrick-Hobbs num fórum de newsgroups no final do século passado, alguns meses após a morte do pai que, escondido e esquecido nessa rede, revelava verdadeiras surpresas para milhares de seguidores. Entre elas, por exemplo, que Kubrick detestava o clássico “The Wizard of Oz”, mas tinha especial apreço por um filme com… Wesley Snipes no papel principal.
Estávamos em 1963 quando Stanley Kubrick revelou pela única vez na sua vida uma lista com o seu top 10 cinematográfico. Fê-lo para uma revista menor nos Estados Unidos da América, hoje extinta, chamada Cinemamagazine, e nela incluia clássicos de todos os géneros e feitios. A encabeçar a lista, “I Vitelloni” (1953), de Federico Fellini e “Wild Strawberries” (1958) de Ingmar Bergman, dois dos três realizadores a quem declarou admiração publicamente: “Acredito que Bergman, De Sica e Fellini são os únicos três cineastas no mundo que não são apenas oportunistas artísticos. Com isto quero dizer que eles não se sentam simplesmente à espera que apareça uma boa história para adaptar ao cinema. Eles têm o seu próprio ponto de vista, o qual é expresso vezes sem conta em cada um dos seus filmes, filmes estes que são escritos por eles próprios ou por alguém que faz esse trabalho a pensar nas suas formas de filmar”. Ainda sobre Ingmar Bergman, foi recentemente divulgada na internet uma “carta de amor” enviada por Kubrick ao sueco, na qual declara: “A sua perspectiva sobre a vida tocou-me profundamente, muito mais profundamente do que qualquer um dos filmes que já realizei. Acredito firmemente que você é o melhor realizador em actividade nos dias que correm”.
Na lista surgem ainda marcos hoje indiscutíveis da Sétima Arte como “Citizen Kane” (1941), de Orson Welles, “The Treasure of the Sierra Madre” (1948) de John Huston e “City Lights” (1931) de Charles Chaplin. Sobre este último, comentou uma vez: “Se algo de importante está a acontecer no ecrã, não é crucial a forma como essa cena é filmada. Chaplin tinha uma cinematografia tão simples, mas no entanto estávamos sempre hipnotizados pelo que estava a acontecer, completamente desfocados do seu estilo pouco cinematográfico. Ele usava frequentemente sets pobres e baratos, iluminação de rotina e por aí adiante, mas isso não o impediu de fazer grandes filmes. Filmes que provavelmente vão durar mais tempo na memória colectiva que os de outro [realizador] qualquer”.
A fechar o top 10, “Hell’s Angels” (1930) de Howard Hughes, “Roxie Hart” (1942) de William Wellman, “The Bank Dick” (1940) de W.C. Fields, “La Notte” (1961) de Michelangelo Antonioni e, finalmente, “Henry V” (1945), de Laurence Olivier. Curiosamente, Stanley Kubrick acabaria por trabalhar com este último nas filmagens de “Spartacus”, em 1959, onde Olivier interpretou o papel de Marcus Licinius Crassus. Mas foram as desavenças que teve com este aquando da pré-produção de “Lolita” que ficaram famosas. Na altura, o actor britânico foi o escolhido por Kubrick para o papel principal, mas quando este quis alterar algumas cenas e diálogos com os quais não concordava, Stanley negou-lhe a vontade e Olivier deu-lhe com os pés. Em carta escreveu-lhe: “Tendo escrutinado o livro intensamente durante a última semana, não me sinto preparado para entregar-me de corpo e alma a um tema que cria muitas dúvidas na minha mente. Não acredito que os pormenores descritivos do livro sejam adaptáveis ao cinema e tenho medo que a história seja reduzida a um nível pornográfico, pelo que não consigo garantir-te que aceite fazer parte de tudo o que me peças durante as filmagens. Repleto de admiração pelo livro, temo que a minha fé na sua adaptação cinematográfica esteja algo tremida”.
Foi em Setembro de 1999, seis meses após a morte inesperada do realizador - vítima de uma ataque cardíaco fulminante enquanto dormia - que a sua filha Katharina Kubrick-Hobbs publicou no grupo alt.movies.kubrick, nas então em voga newsgroups, uma publicação na qual respondia a vários utilizadores que questionavam-se entre si quais os filmes favoritos do norte-americano. Escreveu: “Ele amava o Cinema. Ponto Final. Claro que os grandes realizadores que este grupo tão bem conhece também eram apreciados pelo Stanley. Mas ele via de tudo. Até os maus filmes têm bons momentos, ou cenas particularmente bem filmadas. Mas parece haver aqui um desejo partilhado esquisito para que haja uma lista de algo; dos melhores, dos piores, dos mais aborrecidos etc. etc. Não vos consigo satisfazer nessas listas, mas posso-vos dizer alguns filmes que sei que o meu pai gostava”.
E disse. Ao fazê-lo, revelou obras que nunca ninguém havia imaginado que um erudito como Kubrick pudesse sequer ter visto, quanto mais apreciado. Entre elas, talvez a mais surpreendente revelação foi “White Men Can’t Jump” (1992), de Ron Shelton, com Wesley Snipes e Woody Harrelson nos principais papéis, numa história que envolvia duelos raciais, comédia e basquetebol. O seu fã Sidney Lumet (“cada mês que Kubrick não está a fazer um filme é uma grande perda para a humanidade”) também estava representado com “Dog Day Afternoon” (1975), bem como “An American Werewold in London” (1981) de John Landis, “Metropolis” (1926) de Fritz Lang ou “The Fireman’s Ball” (1967) e “One Flew Over the Cuckoo’s Nest” (1975), ambos de Milos Forman. Sem querer que estas escolhas fossem analisadas muito a sério, pois o seu pai gostava dos filmes de acordo com critérios pessoais específicos e Katharina apenas lembrava-se de alguns exemplos, a filha do conceituado realizador referiu ainda mais uma mão cheia de obras: “Beauty and the Beast” (1946), “Closely Observed Trains” (1966), “The Godfather” (1972), “Spirit of the Beehive” (1973), “Texas Chainsaw Massacre” (1974), “Abigail’s Party” (1979) e, por fim, “Silence of the Lambs” (1991). Num tom irónico, Katharina termina a lista com o único filme que sabia que o seu pai odiava a sério: “The Wizard of Oz”, clássico de 1939. No mínimo, inesperado.
No final dos anos noventa do século passado, ainda antes da estreia de “Eyes Wide Shut”, a revista francesa “Positif” perguntou a dezenas de conceituados realizadores qual ou quais os filmes de Stanley Kubrick que mais os haviam influenciado. “2001: Odisseia no Espaço” foi claramente a obra mais referenciada, tendo sido a escolha de homens de barba rija como Emir Kusturica, Mike Leigh e Sidney Lumet, entre muitos outros. Woody Allen e Clint Eastwood foram alguns dos que preferiram “Paths of Glory”, sendo que Jean Pierre-Jeunet, Philip Kaufman e Roman Polanski, este último considerado um dos mais próximos amigos de Kubrick, escolheram o polémico e ultra-violento “A Clockwork Orange”. Francis Ford Coppola e Oliver Stone ficaram-se pelo genialmente satírico “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb”, sendo que Sydney Pollack e Martin Scorsese, este um dos maiores admiradores de Kubrick e possivelmente aquele que mais elogios públicos dedicou ao realizador, decidiram-se pelo histórico “Barry Lyndon”. Curiosa foi a resposta ao inquérito de William Friedkin: "o meu filme favorito de Kubrick são os primeiros quarenta minutos de “Full Metal Jacket”". Querem ver que os restantes minutos foram exorcizados?
Nota: Artigo publicado originalmente na Take 35 - Kubrick.
2 comentários:
Muito bom artigo! gostei bastante!
Cumprimentos
Obrigado! Abraço!
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