Em "Raiders!: The Story of the Greatest Fan Film Ever Made", três rapazes de onze anos decidem recriar "Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida" cena por cena, recorrendo a qualquer objecto ou cenário que tenham perto de casa; trinta e cinco anos depois (sim, leram bem, trinta e cinco!), finalmente terminam aquele que já foi considerado o "fan film" mais famoso do planeta quando Eli Roth descobriu uma cassete a circular na universidade com uma versão incompleta e apresentou-a ao mundo em alguns festivais de cinema de pequena dimensão. Mas aqui, neste documentário que mostra como toda esta homenagem surgiu, muito mais importante do que a adaptação caseira do clássico de Spielberg, é absorver o desenrolar das relações entre o trio, a forma como o filme sempre os uniu e protegeu do mundo exterior, dos divórcios dos pais, da vida complicada que todos tinham. E como, com o crescimento, as namoradas, os quinze segundos de fama, as drogas e tudo o mais, três amigos quase se odiaram de morte.
Festim para os olhos foi "Sicario", dono e senhor de uma cinematografia de excelência onde cada plano, cada sequência de acção ou introspecção, perto ou longe, de dia ou de noite, no interior de um túnel ou no meio de um deserto, é filmada e pensada ao mais ínfimo pormenor; um elenco todo ele irrepreensível, de Blunt a Brolin, onde o magnânimo Del Toro consegue, ainda assim, sobressair graças ao infinito imenso que é o seu olhar frívolo. Um possante exemplo da beleza do cinema enquanto arte visual.
Numa faceta mais independente, o que dizer de "Kung Fury"? Minha nossa senhora. Dinossauros que falam, um Hitler paneleirote com jeito para as artes marciais, o Thor, o Triceracop (sim, um polícia metade humano metade dinossauro), a Barbarianna e a Katana. Um Kung Fury cheio de estilo - mau actor que até dói - e uma banda sonora absolutamente irresistível. Uma curta-metragem tão ridícula que se torna deliciosa, um mash-up perfeito do cinema de acção, ficção científica e artes marciais dos anos oitenta, numa produção financiada pelo público através do Kickstarter que acabou a criar burburinho no Festival de Cannes e, surpresa das surpresas, a merecer uma adaptação a videojogo e uma sequela. Entretenimento rasca repleto de one-liners, aspecto muita foleiro e interferências típicas dos VHS. Tão mau que é bom ou tão bom que é mau, é amor puro - e, logo, tolo - à cinefilia. E ainda "Turbo Kid", provavelmente o filme pós-apocalíptico mais naif cool de sempre, uma ode encantadora ao cinema underground de ficção-científica dos anos oitenta.
Num equilíbrio notável entre os factos improváveis de uma suspeição pavorosa e as razões prováveis de uma paranóia com origens familiares traumáticas, chegou-nos também "The Invitation", uma obra que sabe queimar lentamente os seus trunfos, vivendo e alimentando-se da dúvida constante, enquanto deixa o semi-desconhecido elenco deambular entre comportamentos normais e momentos bizarros. Na poesia do ridículo, "Ele Está de Volta" parte de um pressuposto tão simples quanto polémico e audacioso: e se Hitler, como que por magia, voltasse à Alemanha dos dias de hoje? Um país repleto de turcos, programas estranhos nas televisões, miúdos com camisolas do Cristiano Ronaldo e em que todos têm acesso a uma tecnologia fantástica chamada... Google. Uma sátira tão deliciosa quanto impetuosa, que deambula entre um estilo Boratesco e um registo ficcionado do Mein Kampf, que num tom jocoso aborda uma mão cheia de problemáticas sociais e políticas que a Alemanha, em particular, e a União Europeia, em geral, enfrentam nos dias que correm. Duas cenas para dificilmente esquecer? Hitler a ser espancado por neo-nazis e a criação da sua conta de e-mail. O fim da picada? Quando Hitler dá cabo de um cão. Assim anda o mundo.
Não nos esquecemos, claro, do grande vencedor dos Óscares, "O Caso Spotlight", um filme de uma importância extrema por duas razões primordiais: primeiro, relembra que o jornalismo não pode nunca perder a sua faceta de utilidade e serviço público em prol do negócio, das metamorfoses das redacções, das necessidades do momento, da falta de disponibilidade financeira ou pessoal para permitir investigações pertinentes e profundas que custam tempo e, consequentemente, dinheiro. Porque o jornalismo deve, mais do que nunca, servir como força em alerta constante para descortinar e revelar qualquer ilegalidade ou legalidade imoral que possa ter sido cometida longe dos olhos da justiça - ou mesmo perto dela, caso esteja corrompida. Em segundo lugar, porque recorda - ou apresenta, aos mais distraídos - a podridão que reina na mais poderosa e mafiosa das instituições mundiais: a igreja católica. Porque não se trata de um caso em específico, mas de um fenómeno.
Para terminar, os dois grandes momentos cinéfilos de 2015: "Star Wars: The Force Awakens", meio reboot, meio reciclagem da fita que deu início a tudo, o sétimo episódio galáctico de Han Solo, Luke Skywalker, Chewbacca e companhia revitaliza uma saga cinematográfica histórica para novas gerações, conseguindo ainda assim agradar os fãs velhotes que olham agora para o futuro com esperança. J.J. Abrams e a Disney infantilizam um pouco os conceitos outrora complexos, imperfeitos (no melhor dos sentidos), ambiciosos e visionários de Lucas, tornando a chancela "Star Wars" acessível a toda a família. Uma espécie de Harry Potter no espaço, um hábil e sólido recomeço, ainda assim longe de ser a obra-prima aguardada e anunciada.
E, por fim, o filmalhão não só do ano, mas da década. "Mad Max: Fury Road", uma orgia de acção contínua, que nunca pára para respirar, num mundo tão desconcertantemente surrealista e detalhado que parece palpável e genuíno. Um extravagante apocalipse de energia e movimento, fantasticamente maníaco, qual western sobre rodas repleto de personagens tão instantâneas quanto expressivas. Um poema de cores blasonadoras, de rimas excepcionais com o passado, de nome Max mas que, qual reviravolta inesperada, poderia muito bem intitular-se Furiosa; é ela quem comanda as prosas da sobrevivência, dá sentido e propósito à hecatombe ecológica e serve de ícone à revolta contra o massacre moral de princípios e valores humanos que corrompe - ao mesmo tempo que o engrandece - o universo criado por George Miller. Que belíssima caminhada de redenção cinéfila.
Nota: Artigo publicado na Take 49
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