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Tão divertido – o processo de masculinização de Thao é hilariante - como comovente, “Gran Torino” narra uma história que, apesar de não ter como ponto de partida um conto verídico, é certamente adequada à vida de milhões de estrangeirados, um pouco por todo o planeta. Com uma visão atroz, mas de desfecho optimista, a obra mais recente do assumidamente republicano ícone norte-americano pega em Walt Kowalski, um herói medalhado da Guerra da Coreia – guerra violenta e sangrenta que marcou a sua personalidade - que acabou de enviuvar, e cujas bases tradicionais fazem com que olhe desconfiado para uma América que não considera ser a sua. O estilo de vida e o carácter da sua própria família envergonha-o e, solitário num mundo onde parece não ter mais nada a fazer que não esperar pela morte, acaba por entrar numa encruzilhada racial que envolverá todos os valores centrais do seu cinema: a liberdade, a solidão, o envelhecimento, a amizade, a morte, a violência, a amargura, o patriotismo, o choque de culturas, entre tantos outros.
E é num constante jogo de antíteses, que envolve os próprios personagens principais – veja-se o contraste entre o velho carrancudo consciente do seu papel no mundo e o jovem inadaptado à procura de um lugar melhor – que Clint Eastwood afirma uma vez mais o seu refinado estilo de realização, numa verdadeira prosa que usa a luz e a ausência dela como eufemismos, transmitindo de uma forma suave uma realidade desagradável. E é durante a noite, aquela que uma vez classificou como opressiva, que Eastwood nos oferece o seu canto de cisne dramatúrgico. Sem cair nas armadilhas de um final feliz, Clint resume em poucos minutos uma vida enquanto homem e actor, cowboy e justiceiro de rua, num acto de redenção capaz de arrancar uma lágrima ao mais insensível dos espectadores. Numa das mais belas – senão mesmo a mais bela – despedida cinematográfica de um actor, somos ainda presenteados com uma canção sumptuosa interpretada pela voz cansada e inconfundível de Eastwood, que sobre um plano alegórico de uma estrada sem fim, enternece o público e deixa-o a pensar no vazio que fica na sétima Arte agora que um dos seus mais brilhantes defensores e artistas a abandona parcialmente.
Incompreensivelmente esquecido e abandonado pela Academia norte-americana – circulou o rumor que tal se deveu à estreia tardia nos Estados Unidos, algo que nunca foi confirmado pela distribuidora do filme ou pela própria Academia -, “Gran Torino” era um dos favoritos às nomeações por quase toda a imprensa norte-americana. Perdeu esse combate – digo eu que tal deveu-se às questões raciais que o filme levanta - mas tornou-se, talvez também de forma algo inesperada, no filme mais lucrativo da carreira de Clint Eastwood, tendo ultrapassado já os cerca de 140 milhões de dólares apenas na box-office norte-americana. Mais inteligente, dramático, divertido e liberal do que qualquer cinéfilo poderia antever, até pelos antecedentes republicanos de Eastwood, “Gran Torino” é o melhor filme americano desta década, uma das mais contundentes provas de que o cinema, mesmo através de temas repetidos e deteriorados, consegue reinventar-se a si próprio, transformando em magia a mais comum das narrativas. Num estilo contido e recatado, Eastwood orquestra uma obra-prima que será, quando a poeira assentar, certamente considerado um dos mais belos quadros da filmografia do cineasta e da história de Hollywood.
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7 comentários:
Gostei bastante, mas creio que a razão para o esquecimento da Academia, foram os actores secundários...
Para apreciar o filme não basta ler a legendagem, é obrigatório entender o calão 'ofensivo', é simplesmente delicioso...!!!
Só o 'Rosnar' do Clint, merecia o Oscar...!!!
O filme de 2008.
concordo com tudo!
é, de facto, uma obra-prima. e é, sem dúvida, um dos meus filmes preferidos de todo o sempre. adorei este filme, é simples mas é brutal. e sim, o rosnar do clint eastwood vale por muitas deixas memoráveis.
Clint é um velho bem rabugento neste filme....
um filme obrigatorio que juntamente com o Mystic River são as duas obras surpremas realizadas pelo Clint... na minha opinião claro.
Gosto de filmes de Clint Eastwood. Ele é um bom ator e ótimo diretor.
Abraços
Ass.: André Siqueira - Milha Turva
A questão é que não consigo atribuir a pontuação máxima face a um elenco secundário tão fraco. Estamos perante um suporte muito fraco a Esatwood que é ainda mais acentuado tendo em conta a presença do mito em frente ao ecrã. Não se pedia grandes actrizes mas estou-me a recordar, por exemplo, da rapariga assassina de Kill Bill e Batlle Royale que poderia, perfeitamente, encaixar ao lado do mito.
Abraço
Fifeco, parte da magia poderá estar ai. Eastwood sozinho consegue levar o filme às costas. Não precisa de coadjuvantes de luxo ou de um vilão ou vilões de excelência. Tudo é banal - até a história - e, no entanto, que obra magnífica. E são assim as obras-de-arte. Funcionam por caminhos misteriosos.
Para mim, e como disse na análise, é o meu filme de eleição desta década e, porventura, um dos meus cinco/dez favoritos de sempre. Fenomenal.
Obrigado a todos pela visita e pela participação ;)
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