quinta-feira, abril 02, 2009

Jack Bauer: Personagem política?


São raros os casos em que um produto de ficção televisiva causa tanta controvérsia política, social e moral como “24”, série dos produtores executivos Robert Cochran e Joel Surnow que já leva sete temporadas de vida. Denominado e classificado por vários como a face oficial do governo norte-americano na guerra contra o terror, Jack Bauer cativou milhões de admiradores em todo o mundo, desde o democrata Bill Clinton, ao republicano e candidato às últimas eleições presidenciais norte-americanas, John McCain, que pediu inclusive em praça pública para aparecer num episódio e falou abertamente sobre “24” numa ida ao programa do comediante Jon Stewart. Filósofos, teólogos, militares ou estrelas de cinema, ninguém ficou indiferente aos sacrifícios de uma personagem patriota, que coloca a defesa e a segurança do seu país no topo das suas prioridades, mesmo que tal traga desgraças irremediáveis à sua vida. Numa altura de profundas mudanças políticas na “terra dos sonhos”, importa agora explorar alguns contornos sociopolíticos do fenómeno televisivo e indagar sobre a (in)existência de limites morais na defesa de uma nação.

Enquadramento

A série que viria a revolucionar o panorama televisivo mundial veio ao mundo num dos períodos mais conturbados da vida e história norte-americana: dois meses após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Filmado e pensado muito antes desse fatídico dia, as ideias inerentes a cada temporada de “24” conseguiram sempre antecipar tendências ou desenvolvimentos reais, tal como se do futuro viessem. Dos aviões que explodem para assassinar o fictício presidente norte-americano, ao chefe de estado negro que surpreendeu tanto republicanos como democratas, Jack Bauer e a CTU – Unidade Contra-Terrorista – reflectem ainda hoje nos ecrãs de televisão dilemas e complexidades reais de uma luta contra ameaças terroristas em sociedades contemporâneas que se regem pelas virtudes do humanismo.

Fenómeno cultural complexo e multidimensional, “24” é ainda entretenimento de excelência, onde a carência de regras e clichés narrativos garante uma imprevisibilidade deliciosa, que não deixa ninguém a salvo de um final menos feliz. Numa era de incertezas, tentar compreender as acções de Jack Bauer torna-se num verdadeiro e original teste aos valores e às predisposições políticas e ideológicas do espectador. Serão os atalhos sombrios de Bauer para chegar à verdade aceitáveis perante uma nação em risco? Violência, tragédia, heroísmo, ambiguidade, causas e efeitos, vencedores e derrotados, tudo entra em jogo nos extensos dias da personagem de Kiefer Sutherland, também ele um actor que passou por um outro inferno – de drogas e álcool – num certo período da sua vida.

Veículo da direita

Os impulsos políticos de direita são claros e visíveis em “24”. Jack Bauer personaliza um vigilante no século XXI que sabota conspirações governamentais e está sempre preparado para promover o bem e extinguir o mal. Com a tortura como assinatura de marca – nem o irmão escapa -, as suas metodologias extremas quebram qualquer lei. Politicamente incorrecto – e marimbando-se para tal -, o instinto de Jack é a autoridade máxima, lei e ordem em caso de dúvida. Uma metáfora para as acções de guerra da administração Bush, dizem muitos comentadores políticos de vários quadrantes, aficionados pela série. No fundo, a criação fictícia de uma justificação para acções políticas tomadas durante longos anos de republicanos sentados nas cadeiras do poder.

Mas então e a admiração da esquerda?

Mas se “24” é um veículo de divulgação das políticas de direita norte-americanas, porque razão figuras centrais da esquerda estão entre os mais fanáticos seguidores da série? A resposta é simples e não merece contestação: apesar dos desfechos crus e muitas vezes cruéis, em que os fins parecem justificar os meios, “24” tem o mérito de não disfarçar os dilemas que cada decisão de Jack Bauer levanta. Por isso mesmo, não é evitada a discussão pública e política em torno dos sucessos e fracassos de uma administração que só recentemente, e ao fim de oito anos, abandonou o poder. E há uma grande diferença entre Bauer e Bush: um é competente e triunfa em missão; o outro fracassou em todas as suas acções de âmbito planetário, causando danos irreparáveis na vida e na reputação de uma nação.

Feitiço contra o feiticeiro

Quando Dennis Haysbert foi anunciado como o actor que asseguraria a personagem presidencial da série, levantou-se de imediato uma suspeição: os produtores executivos da série planeavam não só abrir uma janela até então fechada e que se julgava impensável – a de um presidente negro -, como também preparar uma sucessão republicana de Bush para o braço direito Colin Powell num futuro próximo, conseguindo assim o que Al Gore, vice-presidente do mandato de Bill Clinton não viria a alcançar alguns anos depois, em 2004. No entanto, o que acabou por acontecer foi que o “presidente Palmer” abriu não uma janela mas sim uma gigantesca porta para a viabilidade de uma inverosímil candidatura do senador Barack Obama, hoje o 44º presidente norte-americano.

Mensagem correcta?

Numa cultura obsessiva – a norte-americana em específico mas também a ocidental em geral -, onde os direitos civis, bem como a filosofia moral do que é certo e errado pouca preponderância tem na educação, é interessante assistir à forma como “24” coloca a liberdade e a segurança de um povo num patamar bem mais elevado do que as regalias celebradas na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948. Da descriminação racial e religiosa à subversão do artigo quinto que garante que ninguém será submetido a tortura ou tratamentos cruéis e desumanos, nenhuma das morais que a série transmite é consensual. As mensagens transmitidas estão, por isso, longe do politicamente correcto. Mas a verdade é que também as políticas reais de um mundo caótico assim o demonstram. Portanto, mais do que incentivos deturpados, “24” aposta em provocações que resultam em dilemas repletos de emoção, que garantem audiências acima da média. Está à espera do quê para abraçar “24”?

Artigo publicado na edição 13 da Take Cinema Magazine.

5 comentários:

abidos disse...

Excelente artigo, e acrescento uma possível razão que faz os Democratas gostar tanto da série:
Se as acções do Jack Bauer podem ser consideradas de Direita, os vários Presidentes 'Bons', que já foram representados na série, foram sempre de Esquerda, os Politicos 'Maus', foram sempre aqueles que apoiavam acções militares agressivas(preventivas)...

Só tenho uma critica à serie, se as ambiguidades das personagens Americanas têm sido muito bem exploradas, em relacção aos Terroristas isso já não acontece, ou são simplesmente mercenários, ou então são fundamentalistas sem muitas razões para isso(existem excepções, mas a regra geral...!!!)...

Simão disse...

Se há post que dá significado à minha vinda a este blog diariamente, é este!

Análise muito completa e com a qual concordo plenamente. Parabéns pelo texto.

Abraço

F. disse...

Magnífico post.

Dona Mãe Babada disse...

magnifíca análise de uma magnífica série :)

Carlos M. Reis disse...

Bem, obrigado a todos pelas simpáticas palavras.

Abidos, é uma perspectiva que não tinha reparado. Bem visto! Um abraço!

Cumprimentos a todos, obrigado pela visita!

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