segunda-feira, maio 04, 2009

Watchmen (2009)

Estamos em 1985 e nos Estados Unidos da América, Richard Nixon cumpre um hipotético terceiro mandato. A Guerra Fria parece não ter fim à vista e a sociedade está em pleno processo de falência moral. No entanto, ninguém se preocupa: a mais valiosa das armas, um físico nuclear transformado em super-herói com todos os poderes possíveis e imaginários trabalha para o governo norte-americano. “Watchmen – Os Guardiões” é seguramente um dos mais atípicos filmes de super-heróis da história recente de Hollywood. Contextualizado na época em que a banda desenhada que dá origem ao filme foi imaginada e executada pela mente brilhante de Alan Moore – o mesmo que desenhou “V for Vendetta”, “Constantine” ou “The League of Extraordinary Gentlemen” -, “Watchmen” narra uma fábula de um mundo onde os super-heróis sem poderes sobrenaturais são algo do passado e correm o risco de desaparecer por completo, se a teoria do vigilante Rorschach tiver algo de verdade. Segundo este – a melhor personagem do filme, já agora -, está em curso uma conspiração que visa assassinar a antiga legião de super-heróis reformados, da qual também faz parte. Tudo porque Comedian, um dos seus antigos colegas justiceiros, aparece morto sobre circunstâncias no mínimo duvidosas. Num planeta em que a missão destes era vigiar a humanidade, chegou a altura de perguntar quem protege agora os antigos super-heróis? A resposta é simples: eles próprios. E eis que renascem das cinzas, contra a vontade de todos aqueles que um dia os admiraram.

Watchmen” é um filme repleto de virtudes. Considerada uma adaptação cinematográfica impossível por todos quantos conheciam a obra de Moore, a verdade é que Zack Snyder não só alcançou tal feito, como o fez com uma inesperada mestria que comprova o seu talento e capacidade para ver a sua arte para além do comum dos realizadores. Depois de exaltar meio mundo com a experiência visualmente arrasadora que foi “300” – a outra metade rogou-lhe as piores pragas e classificou-lhe de estilista vácuo -, Snyder transforma-se num perfeccionista a vários níveis e oferece aos fãs de “Watchmen” e a todos os outros um filme com uma história sólida, que consegue agradar a gregos e troianos. E fá-lo adaptando com uma veracidade arrepiante as vinhetas coloridas de Moore. E aproveito este parágrafo em que elogio o trabalho de Snyder para o culpar das duas graves lacunas de “Watchmen”, que afastam o filme de um estatuto de obra-prima: a fraca caracterização de grande parte das personagens – e três horas de fita deveriam ter sido mais do que suficientes para tal – e o final tecnicamente algo manhoso que este reinventou das histórias originais, longe do impacto e da perícia de algumas das sequências construídas previamente na fita.

Daqui em diante, só restam louvores para “Watchmen – Os Guardiões”. O que dizer dos fantásticos e caprichosos créditos iniciais, talvez os mais astutamente arquitectados desta década – em competição directa com os de “Lord of War” -, que ao som de “Times They Are A-Changin”, de Bob Dylan, introduzem à audiência anos e anos de recortes vários que explicam ao público a ascensão e a queda dos super-heróis que irão ser posteriormente retratados? E do elenco, constituído por vários nomes semi-desconhecidos da indústria, mas que em conjunto provam saber adaptar-se cabalmente às características e ânsias de cada uma das suas personagens? Aqui, destaque merecidíssimo para Jeffrey Dean Morgan, na pele de Edward Blake, e Jackie Earle Haley, enquanto Rorschach, personagem-chave do filme, aquela que mais cativa e é trabalhada ao promenor. E está na voz tenebrosa de Haley, que narra a película durante quase três horas, um dos mais preciosos trunfos de Snyder.

Mas não ficamos por aqui. Temos ainda uma execução crua e saborosa das cenas de acção, sem grandes preocupações com o realismo que deveria ser pedido a super-heróis que não são assim tão super. Aqui, especial atenção para a cena de resgate da prisão de Rorschach, alucinante e divertida, sangrenta e sem medo de colocar, e bem, o estilo sobre o conteúdo. E o mesmo se pode dizer da cena de sexo entre a bela e sensual Malin Akerman e Patrick Wilson, sem constrangimentos ou inquietações comerciais, acompanhada de uma sonoplastia brilhante. E é neste percurso circular e articulado de elementos mágicos, que chegamos à banda-sonora do filme, digna de um genuíno heroísmo, por não ter medo de ir buscar clássicos de outras eras, completamente descontextualizados com o espírito de acção e aventura de “Watchmen” e reciclá-los de forma assustadoramente eficaz. De “Hallelujah” interpretado por Leonard Cohen, o “Unforgettable” de Nat King Cole, o “The Sounds of Silence” de Simon & Garfunkel ou o “All Along the Watchtower” de Jimi Hendrix, todos os temas batem certo com as cenas a que são copulados, numa harmonia quase sufocante de tão inacreditável que é.

O que dizer mais? “Watchmen” é uma sátira complexa, cínica e arriscada sobre a natureza humana. A sua descomedida ambição acaba por a prejudicar no final, mas a mensagem passa à mesma. E não há melhor elogio que possa ser feito ao filme de Zack Snyder que este: “Watchmen – Os Guardiões” é a mais fiel das adaptações de um comic book que a sétima arte já viu. Para o bem e para o mal.

10 comentários:

Tiago Ramos disse...

Ainda não consegui ver... Mas até estou curioso, em face de tantas críticas distintas...

Paulo Ferreira disse...

Bela crítica! Focas particularmente aquela que também considero ser a grande pecha desta adaptação da graphic novel: a falta de profundidade de algumas personagens, nomeadamente a Laurie Juspeczyk e, acima de todas, Adrian Veidt, AKA Ozymandias. Tendo em conta o papel que desempenha ao longo do enredo e no seu desfecho, pelo menos relativamente a ele justificava-se algo mais para compreender o que leva o dito "homem mais inteligente do mundo" a medidas tão drásticas. No entanto, tal como em relação à "alteração" do plano original de Veidt, compreende-se essa falha, pois ao contrário do que referes 3 horas nunca seriam suficientes para adaptar de forma totalmente satisfatória uma obra tão densa.

abidos disse...

Subscrevo praticamente tudo, sem dúvida um excelente filme...

Unknown disse...

todos os que ja leram a obra original falam de um final que foi alterado sem nunca mencionar o final original. como não encontro em lado nenhum a bd em português será que alguem me poderia elucidar das mudanças.

Nuno Pereira disse...

Estupendo filme e uma boa critica a acompanhar..

Não é facil melhorar essa tal lacuna na caracterização das personagens, porque são até bastantes, mesmo para um filme com 3 horas.

Uma palavrinha também para a "gostosa" Espectro de Seda 2!

O Cara da Locadora disse...

Um dos melhores filmes que eu vi recentemente... É uma pena que muitos foram sem entender o projeto e criticaram descabidamente o filme... Abraços...

Carlos M. Reis disse...

Paulo, completamente de acordo em relação ao Ozymandias.

Quanto ao que disseram das 3 horas não serem suficientes para aprofundar muito bem as personagens, até posso concordar. Mas eram mais do que suficientes para fazer melhor a esse nível do que acabou por ser feito.

Obrigado a todos pelos comentários e pela visita. Até breve ;)

Paulo Ferreira disse...

Joao, não sei se ainda vou a tempo de responder ao teu comentário (provavelmente não), mas cá vai.

Enquanto que no filme Adrian Veidt recorre ao Dr. Manhattan como bode expiatório no seu plano de dizimar milhões de vidas de modo a acabar com a Guerra Fria, na graphic novel ele basicamente simula uma invasão alienígena. Para isso, contrata e isola numa ilha um grupo de cientistas e artistas, que são incumbidos de projectar um gigantesco e horrendo extraterrestre que mais tarde será teletransportado para o centro de Nova Iorque, recorrendo aos avanços tecnológicos das suas empresas nas áreas da manipulação genética (basta ver Bubastis, o animal de estimação de Veidt) e do teletransporte. Assim, a expressão do Comediante "It's all a joke!" faz mais sentido, não achas? A nuance deste plano é que o teletransporte de seres vivos vinha-se mostrando particularmente ineficaz, já que o sujeito acabava sempre por explodir à "chegada". Veidt calculou que neste caso tal explosão (e respectivas ondas cerebrais libertadas) provocaria a morte de metade da população de Nova Iorque, considerando-o uma perda necessária, suficiente para unir os EUA e a URSS contra o inimigo comum.
Um dos artistas "sitiados" era Max Shea, autor de uma bem sucedida série de BD sobre piratas (que neste mundo alternativo assumem o papel que as BDs de super-heróis têm no nosso), de seu nome "Tales of the Black Freighter". Uma dessas histórias é-nos mostrada de forma paralela à principal, sendo uma das mais-valias da obra.
Por último, outra diferença está naquela cena em que o Daniel Dreiberg espanca o Veidt, fazendo-o sentir-se mal com o seu plano. Na obra original, tal não acontece: aliás, Dreiberg acaba por conformar-se com a racionalidade extrema do plano de Ozymandias.

Unknown disse...

obrigado,ainda foi muito a tempo

disse...

eu peço imensa desculpa por discordar... eu detestei o filme.
estive mesmo para sair da sala no intervalo... só não o fiz para dar o benefício da dúvida. mas pouco adiantou.
pf não leves a mal a minha opinião.

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