2006. Cinematograficamente, alguns chamaram-lhe o “ano dos pesadelos”. A morte (“Voo 93” ou “World Trade Center”), a guerra (“As Bandeiras dos Nossos Pais” e “Cartas de Iwo Jima”, ambos realizados por Clint Eastwood) e outros temas escuros e sombrios marcaram muitos dos filmes de principal relevo no panorama internacional, tanto ao nível da bilheteira como dos galardões. Fora do grande ecrã, a escuridão imperou também: milhares de soldados americanos e europeus perderam a vida na Guerra do Iraque e dezenas de milhares de cidadãos iraquianos também não sobreviveram para ver Saddam Hussein ser condenado a uma morte por enforcamento, imagens que não deixaram de chocar os quatro cantos do mundo, apesar de se tratar de um ditador com a corda ao pescoço. E porque provavelmente este será o mais negro parágrafo da história desta revista, aproveito desde já para enclausurar nele e não noutro uma referência aos tristes falecimentos de dois grandes ícones ligados ao cinema e à televisão: Robert Altman, o realizador de obras intemporais como “M*A*S*H”, “Nashville” ou “The Player” e Peter Boyle, um actor versátil como poucos, que conquistou o seu lugar ao sol enquanto monstro de Frankenstein e o coração de milhões enquanto pai de Ray Romano na série “Everybody Loves Raymond”. Aaron Spelling, Shelley Winters, James Brown, Joseph Barbera e Jack Palance foram algumas outras estrelas ligadas à indústria do entretenimento que nos abandonaram em 2006.
Mas deixemo-nos de tristezas, até porque estas não pagam dívidas e o sétimo ano da primeira década deste terceiro milénio proporcionou-nos também gargalhadas inesquecíveis. À cabeça está, sem margem para dúvidas, o chocante “Borat: Aprender Cultura da América Para Fazer Benefício Glorioso à Nação do Cazaquistão”, um falso e provocatório documentário que nos deixa a pensar como é que é possível que o ser humano, por mais informado e educado que seja, possa por vezes ser tão simplório e ignorante. Moralmente incorrecto e irresponsável tanto religiosa como etnicamente, o cazaque Borat Sagdiyev ou, melhor dizendo, o britânico Sacha Baron Cohen entendeu melhor que ninguém que a própria realidade é o melhor suporte para qualquer comédia. A um nível completamente diferente, o independente “Little Miss Sunshine” conquistou plateias e nomeações com as divertidas aventuras de uma família disfuncional que procura o sonho americano. Com um elenco fantástico e interpretações geniais de actores como Alan Arkin ou Steve Carrell, “Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos” é, além de uma comédia divertida, uma lição sobre a importância, a função e o valor da família. Os Hoover vivem à beira da implosão como família, mas acabam por encontrar em si mesmos o apoio para lidar com a incerteza da vida. Por fim, impossível não falar de “Scoop”, uma deliciosa comédia ligeira de Woody Allen, um cineasta sumptuoso cujo humor tem tanto de culto como de desesperado. Em “Scoop”, a despreocupada ansiedade sobre a vida e a morte espelhada em cada diálogo mostra-nos um Allen pecaminosamente inteligente. E como diz o nova-iorquino a certa altura no seu filme, “se todos tivessem o meu sentido de humor, o mundo não estava assim”. Alguém tem dúvidas?
Em 2006, duas personagens míticas da história do cinema voltaram a brilhar no escuro das salas de cinema de todo o planeta. Primeiro foi Bond, James Bond, que apareceu perante os fanáticos da saga como nunca nenhum deles o tinha imaginado. Em “Casino Royale”, uma fita do já experimentado na personagem Martin Campbell, o mais famoso espião inglês é aparentemente insensível, extremamente cínico, glacial, intenso, lacónico e robusto, bastante robusto. Além de tudo isto, é louro. Craig, Daniel Craig, foi talvez a mais controversa escolha de casting desta década, mas a verdade é que não houve um único crítico da sua escolha que não ficasse rendido à sua interpretação. Uma reeinvenção histórica que humanizou a desgastada personagem e conferiu à saga uma lufada de ar fresco. Com este Bond, nunca mais haverá amor sem dor. Depois, e naquela que provavelmente terá sido a sua última aparição cinematográfica, eis que voltou aos ringues “Rocky Balboa”, na sua melhor forma desde que o filme original foi laureado com vários Óscares, entre eles o de Melhor Filme. Neste sexto capítulo, Stallone esbanja uma vida perante os nossos olhos. Repleto de coração e sensibilidade, “Rocky Balboa” não é um filme de boxe, mas sim um impulso auto-retratista, de um repentismo entusiasmante, instigado pela solidão, e que vem, de certa forma, pedir “desculpa” por todas as sequelas que, apesar de cativantes, arruinaram por demasiadas vezes o próprio espiríto e lema do lutador: “You, me, or nobody is gonna hit as hard as life. But it ain't how hard you hit; it's about how hard you can get hit, and keep moving forward”.
Seria impensável orquestrar um ano em revista sem mencionar a obra de maior sucesso a nível comercial desse mesmo ano. Em 2006, essa sorte calhou ao filme intermédio da trilogia de Jack Sparrow, esse pirata insolente que deu um novo ânimo à sua classe, quase sempre tão mal tratada num ecrã de cinema. “Piratas das Caraíbas: O Cofre do Homem Morto” destronou por mais de duzentos milhões de dólares o segundo mais visto do ano nos Estados Unidos da América (“À Noite, no Museu”) e deu azo a muitas paixonetas adolescentes por um homem cujo talento valeu-lhe três nomeações para Melhor Actor nesta década, mas ainda nenhuma estatueta dourada. Falamos, claro, de Johnny Depp. Já a nível global, o inevitável “The Da Vinci Code”, de Ron Howard, foi aquele que mais gente levou a uma sala de cinema. Infelizmente, o resultado da adaptação cinematográfica foi unânime: comprem o livro. Não tão rentável mas também um verdadeiro deleite a vários níveis, foi em 2006 que “300” espartanos comandados por Leónidas assaltaram o mundo de forma avassaladora, num combate neo-épico abarrotado de violência, estilo e atitude em alta resolução. E porque a internet e as tecnologias associadas marcam também elas esta década, é importante não esquecer o verdadeiro vírus cinematográfico que cresceu do nada e transformou-se num monstro através da difusão de vídeos, cartazes, imagens e websites criados por fãs de um conceito: o de um avião repleto de cobras em pleno voo. E assim, como num sopro de magia, aparecia “Snakes on a Plane”, definitivamente o melhor pior filme do ano, líder de pesquisas cinematográficas no Google durante vários meses.
2006 poderá não ter sido o ano da melhor colheita da década, mas certamente esteve longe de ser uma das piores. Entre as estreias do ano mais aplaudidas tanto pela crítica como pelo público esteve “The Departed”, remake de Martin Scorsese do filme homónimo asiático lançado alguns anos antes. Com um forte elenco – Jack Nicholson, Matt Damon e Leonardo DiCaprio, apenas para citar alguns -, “Entre Inimigos” conquistou na cerimónia realizada no Kodak Theatre no ano seguinte o prémio mais desejado na indústria. Nessa mesma cerimónia, um dos outros nomeados foi “A Rainha”, do britânico Stephen Frears, que acima de tudo destacou-se por uma fantástica interpretação da monarca mãe de Inglaterra de Helen Mirren, muito justamente premiada por esse mesmo desempenho. Mais discretos, “Os Filhos do Homem” e “O Terceiro Passo” conquistaram as audiências com narrativas originais e inteligentes e realizações soberbas. A primeira do mexicano Alfonso Cuarón, que provoca um debate sobre o futuro da humanidade suportado numa mescla de ingredientes como a morte, a ciência, o racismo e o amor. A segunda de um dos realizadores mais marcantes desta década, o “jovem” Christopher Nolan, que oferece um guião dividido, tal como um truque de magia, em três passos. No início, somos presenteados com algo que se parece vulgar mas não o é. De seguida, ludibriados com uma actuação fantástica que torna extraordinário o banal. Por fim, e tal como obedece o mágico terceiro passo, o clímax, em que o efeito da ilusão é produzido e o espectador finalmente bate palmas. Entretenimento portentoso, “O Terceiro Passo” esteve quase a ser o melhor filme de Hugh Jackman em 2006. Não fosse...
Poucas foram as palavras que consegui encontrar ao longo dos últimos anos para descrever “O Último Capítulo”, majestosa obra de amor e ficção científica de Darren Aronofsky. “Um filme tão luminescente como a própria vida”, disse alguém. “Capaz de nos levar às lágrimas”, comentou um colega de redacção aqui na Take. “Toca o impossível e proporciona uma autêntica odisseia dos sentidos, o despertar de novas sensações”, afirmou exacerbadamente um conceituado blogger. O mesmo que defendeu que “Transcendente” era “uma palavra demasiado frívola para descrever um filme que não tem precedentes”. E como que num pasmo filtrado, resumiu-se tudo a uma simples e pequena palavra: “imortal”. E assim, nas palavras dos outros, fica feita a homenagem a um dos raros monumentos nesta vida que, tantos anos depois, ainda nos deixa sem palavras para a descrever. Se ainda não o viu, do que é que está à espera?
NDR: Artigo publicado na edição 21 da Take Cinema Magazine.
1 comentário:
Bom eu nesse ano lembro-me logo do Labirinto do Fauno (saiu em 2007 cá em Portugal tal com The Fountain)
Enviar um comentário