Todos pensam que é muito divertido cobrir o Festival de Cannes. É um daqueles eventos em que a sua essência, tal como o Super Bowl, Wimbledon ou o Derby de Kentucky, está escondida por detrás da sua lenda. Mas se o Super Bowl demorasse duas semanas, assim sim seria mais como Cannes. Tenho na mão a primeira edição da “Screen International”, acabadinha de sair, um jornal diário em língua inglesa sobre o Festival de Cannes… e tem 158 páginas. A maioria das páginas pertencem a anúncios de filmes que serão aqui mostrados, em competição ou não, e enquanto as folheio começa a crescer a minha dose anual de insegurança em relação à minha estadia. Não conseguirei ver mais do que uma fracção destes filmes. Irei perdei alguns dos melhores. E irei desperdiçar o meu tempo a ver alguns dos piores. Nunca conseguirei encontrar todas as estrelas e todos os realizadores que deveria entrevistar e, se conseguir apanhar alguns bastante interessantes como Barbara Hershey ou Dusan Makavejev, os meus editores vão querer saber porque não almocei antes com a Elizabeth Taylor.
Durante as próximas duas semanas, estarei a cobrir uma história sem fim nem forma. Todas as manhãs, pelas 8:30, haverá o primeiro de muitos visionamentos diários. E, todas as noites à meia-noite, uma nova festa estará a começar. O meu trabalho será pensar de duas formas de uma só vez: ser crítico de cinema, avaliando cada filme que vir e tentar encontrar alguma espécie de padrão entre eles; e ser um coscuvilheiro, descobrindo porque razão a Bo Derek apenas fez dois filmes desde “10”. A única constante nesta minha batalha será o meu computador. (…) Se tiver sorte, no entanto, algo extraordinário irá acontecer-me durante este festival. Irei ver um filme que fará a minha espinha arrepiar-se com tamanha grandiosidade, saindo da sala de cinema sem palavras. Não há sítio melhor neste planeta para ver um filme que no Palais des Festivals em Cannes, com o seu ecrã três vezes maior que o normal, o seu sistema de som perfeito e, acima de tudo, a sua plateia com quatro mil pessoas que vivem apaixonadamente esta arte.
(…) Seria fácil pedir às estrelas cintilantes para entrarem pela porta traseira, mas tal iria alienar o conceito do festival. No velho Palais, no fim da Croisette, as procissões nocturnas pelas escadarias acima tornaram-se um ritual de renome mundial. Para perceberam a dimensão, quando reestruturaram o novo Palais, uma das alterações foi tornar as escadas maiores e mais largas. De facto, tornaram-nas também mais inclinadas, pelo que na primeira “época” do novo Palais, até fizeram um aviso para os fotógrafos terem cuidado, não fossem tropeçar e começar uma verdadeira avalanche humana de fotógrafos e celebridades pela escadaria abaixo. Consequência disso, mais obras: reduziram o ângulo das escadas, mas ainda assim obrigavam as estrelas a ultrapassar um percurso de obstáculos, chegando em limusines, atravessando uma passadeira vermelha, subindo uma escadaria gigante, tudo isso sobre os olhares de milhares de fãs provenientes de todo a Europa, sedentos por uma oportunidade real de verem os seus heróis em carne e osso. Muitos actores e actrizes nunca estiveram num palco de teatro e, apesar da sua fama ser vasta, nunca receberam uma grande ovação; a sua chegada a Cannes é o mais parecido que eles alguma vez vão conseguir de sentir a sensação de marcar um touchdown. Algumas celebridades francesas são mesmo viciadas neste ritual, e aparecem todos os anos; Gerard Depardieu é uma visão tão familiar a passear pela Croisette no seu motociclo, que é quase uma das instituições de Cannes.
Mas algumas vezes as multidões tornam-se complicadas. Quando uma celebridade de grande magnitude – alguém como Catherine Deneuve ou, digamos, Clint Eastwood – aparece, o público entra em loucura, espalha-se pelas ruas e as árvores enchem-se de fotógrafos. Num mundo de doidos, há sempre a possibilidade de alguma coisa fugir ao controlo da segurança e da organização. O ambiente torna-se desconfortável. Na noite que James Stewart veio a Cannes, em 1985, a multidão ficou tão entusiasmada com a sua presença que o “velho homem” foi empurrado de um lado para o outro dentro do cordão policial que o “protegia”. Há sempre a possibilidade de um motim quando, por exemplo, Jerry Lewis vem a Cannes. Quando cá esteve em 1983, devido ao “The King of Comedy” de Scorsese, ele contou-me como “trabalha” a multidão: “Tens que andar devagar. O que eles querem é ter tempo para olhar bem para ti. Se andares depressa, vão ter medo de não te ver bem, logo irão correr uns para cima dos outros… e começa o motim. Por isso, ando sempre com estilo e… devagar. Olá! Aqui estou eu! Olá, tudo bem? Olhem bem para mim! Oi companheiro, como é que estás? Assim não há chatices”.
Nota: Traduzido e adaptado livremente a partir do livro “Two Weeks in the Midday Sun: A Cannes Notebook” e publicado originalmente na Take 30.
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