Centrado na histórica vitória da selecção norte-americana de futebol, constituída na sua maioria por jogadores amadores, sobre a poderosa e aristocrata selecção inglesa, então considerada a principal candidata ao título no Mundial de Futebol de 1950 no Brasil, importa começar por afirmar que “The Game of Their Lives”, enquanto exemplar artístico e técnico desta arte que veneramos e à qual chamamos cinema, é uma miséria. Mesmo a nível factual, revelaram posteriormente alguns dos sobreviventes do jogo, quase tudo é romantizado para que uma vitória de um carteiro, dois ou três professores, um lavador de pratos e um director funerário sobre uma mão cheia de jogadores reputados na altura como sendo os melhores do planeta (principalmente Stan Mortensen e Stanley Matthews) se tornasse numa fábula de David contra Golias, ocultando detalhes, jogos e pormenores importantes no longo percurso dos norte-americanos que ajudaria a perceber um pouco melhor a forma como foi construído este resultado memorável. A maneira como o desporto em si é filmado dentro das quatro linhas, essa, é melhor nem falar; basta imaginarem Gerard Butler como um guarda-redes imbatível ou uma dúzia de jogadores à volta da bola na mesma jogada, vezes e vezes sem conta, e está tudo dito.
Porque escrevo tantas linhas sobre o mesmo então? Porque o feito norte-americano da década de cinquenta é provavelmente o melhor exemplo de que, no futebol, tudo é possível. E o leitor merece descobrir um pouco melhor o que realmente aconteceu em terras brasileiras a veteranos de guerra como Frank Borghi – que defendeu tudo o que havia para defender nesse jogo -, Pee Wee Wallace, o caceteiro Gloves – que perto do final do jogo placou um jogador inglês que se isolava como se de um jogo de rugby se tratasse - ou, acima de tudo, o haitiano que nem naturalizado norte-americano era e que marcou o golo que atirou aqueles onze desconhecidos para o panteão eterno da glória desportiva. É neste homem, Joe Gaetjens, que procuro colocar todas as vossas atenções.
Gaetjens, nascido e formado no Haiti, lavava pratos num restaurante nova-iorquino e recebia vinte dólares por jogo numa equipa local de futebol para conseguir pagar os estudos universitários, após ter arriscado tudo numa viagem solitária para a Terra dos Sonhos. Ninguém o conhecia e apenas se juntou à selecção norte-americana umas semanas antes da equipa rumar ao Brasil, por obra e graça de um colega de equipa que o indicou ao seleccionador de modo a resolver uma lacuna grave no conjunto norte-americano, sem a disponibilidade de um par de jogadores inicialmente convocados que não obtiveram autorização dos seus patrões para se ausentarem durante duas ou três semanas. Descobriu-se mais tarde, Gaetjens nem cidadão norte-americano era e viajou para o Brasil com um passaporte falso. A FIFA investigou o caso posteriormente mas aceitou a justificação norte-americana que, na altura, um visto temporário seria suficiente para considerar o jogador como homem da casa.
No filme, é retratado como um homem negro – na verdade, fotografias a preto-e-branco desse Mundial demonstram que, quanto muito, seria mulato – repleto de rituais e crenças voodoos. A família, entrevistada recentemente pelo ESPN, diz ser tudo mentira: Gaetjens era católico não praticante como tantos outros, um rapaz banal sem manias estranhas. Apenas uma das muitas incongruências do filme – omitem os restantes jogos dos EUA no Mundial, colocam a selecção no Brasil por convite quando na verdade tiveram que eliminar Cuba num playoff a duas mãos para garantirem a qualificação, etc. etc. Mas voltemos ao herói da história, aquele que foi carregado em ombros por milhares de brasileiros em Belo Horizonte, que viram no seu golo a solução para a selecção anfitriã não defrontar o temível conjunto britânico na fase seguinte da prova. O homem que depressa desapareceu, que entre ambiguidades e desinformações tornou-se num mito. Isto, claro, até a ESPN explorar o seu destino e a sua vida aquando do Mundial de 2010.
A glória efémera no Mundial de 50 não levou Gaetjens a uma caminho repleto de sorte e fama. Alguns meses após o fim do torneio, o haitiano deixou os estudos e rumou à liga francesa, ansioso por aproveitar a reputação que o golo acrobático impossível frente aos ingleses lhe proporcionara. Fluente na língua francesa, defende a sua família que a adaptação à Europa não se revelou difícil. Mas os míseros quatro jogos que disputou pelo Racing Club de Paris - com dois golos apontados - mostram que algo falhou nesta sua experiência fora-de-portas. A sua falta de utilização e uns joelhos problemáticos acabaram por o transferir para o Troyes AC, de uma divisão inferior, numa troca directa de jogadores. Poucos anos depois voltaria ao Haiti.
No seu País natal tornou-se um ícone. Recebido por milhares no aeroporto, Gaetjens foi contratado para ser a cara da Palmolive e da Colgate nas Caraíbas. Assinou pelo principal clube do país mas lesões recorrentes diversas obrigaram-no a terminar a sua carreira aos 29 anos. Antes disso, teve ainda tempo de jogar pela selecção nacional haitiana - como acabaria por não se naturalizar norte-americano, o Haiti aproveitou legalmente o facto - e foi titular num jogo decisivo de apuramento para o Mundial de 54, contra o México. O nariz começou a sangrar sem parar e Gaetjens teve que sair. Esse seria o último jogo oficial da sua carreira.
Arrumadas as botas, o herói de Belo Horizonte foi para casa descansar. Familiarmente relacionado com um candidato à presidência do Haiti - Louis Dejoie -, Gaetjens tornou-se uma bandeira política na conquista de votos. Mas não chegou. Perdidas as eleições para o médico François “Papa Doc” Duvalier, o seu destino ficou traçado: Papa Doc tornou-se um ditador sem escrúpulos e, paranóico com possíveis atentados à sua liderança, pouco demorou a encarcerar/assassinar todos aqueles que sabia serem contra a sua eleição. Gaetjens e o seu irmão foram dois dos que acabaram na prisão de Fort Dimanche, prisão onde todas as noites às 22:00 um prisioneiro era chamado para o pátio e executado. No dia 10 de Julho de 1964, calhou a fava a Gaetjens. Apenas mais um entre os trinta mil que foram assassinados durante o regime de Papa Doc. E é esta história de vida, tanto ou mais que o feito inigualável dos norte-americanos no dia 29 de Junho de 1950, que merece este destaque. Se o fraquíssimo filme de David Anspaugh ("Rudy") é o catalisador que precisam para a descobrir, que assim seja. Porque há males que vêm por bem.
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