quarta-feira, outubro 04, 2017

António de Macedo (1931-2017)


Começou por ser arquiteto na Câmara Municipal de Lisboa mas foram as Belas Artes que cativaram o seu olhar. Fervoroso apoiante do movimento cineclubista, começou por realizar documentários antes de enveredar pela ficção. Experimentalista por natureza, visionário, autointitulava-se de anarco-mistico, foi também professor universitário e roubava tempo para se dedicar à escrita. Há já alguns anos que a sua saúde se havia fragilizando, mas manteve-se sempre ativo até ao final, refugiando-se nos seus manuscritos e recentemente, na rodagem da merecida homenagem, o documentário biográfico "Nos Interstícios da Realidade".

Falar do Cinema Novo e não falar de António de Macedo é algo inconcebível, mas há quem o tenha feito! Por algum motivo, inexplicável, o seu nome e o seu trabalho tendem em cair no esquecimento e no papel que tiveram na História do Cinema em Portugal. A revolução cinematográfica que se fazia sentir em toda a Europa do pós-guerra, nomeadamente em Inglaterra, França e Alemanha, influenciaram os percursores portugueses. Paulo Rocha, Fernando Lopes e António de Macedo, apoiados por António da Cunha Telles, são os nomes incontornáveis do cinema moderno português que ganhou vida nos anos '60. Rocha com "Os Verdes Anos", Lopes com "Belarmino" e Macedo com "Domingo à Tarde". "Domingo à Tarde", adaptado a partir do romance de Fernando Namora, com Isabel de Castro e Ruy de Carvalho nos principais papéis, mostra-nos a "realidade" de uma história condenada ao infortúnio onde os intervenientes, apesar de conscientes de toda a inevitabilidade, não conseguem deixar de seguir o seu rumo. Era o cunho que faltava ao cinema português, o abandono da teatralização em detrimento de histórias reais com personagens reais.

Seguiu-se "Sete Balas Para Selma", que em '67, pleno regime ditatorial, empoderava uma mulher, Florbela Queirós, opinativa e decidida. Esta não seria a primeira vez que iria testar a paciência dos censores e mais tarde da Igreja, com o polémico "As Horas de Maria". Em "Nojo aos Cães" assina uma declaração de revolta contra o Estado Novo. Em '73, "A Promessa" leva Macedo até Cannes com uma história quase documental de um jovem casal numa pequena comunidade piscatória que se vê a braços com um dilema moral. Belo, maravilhoso, inesquecível. O pós 25 de Abril abre uma nova fase na sua carreira, onde a Fábula/Fantasia ou Ficção Cientifica (como alguns apelidam), se apodera da sua visão. Sinde Filipe, o embaixador da maioria dos seus filmes, é muitas vezes o herói e o anti-herói da história. "O Princípio da Sabedoria" dá inicio a esta vertente que continuou nos anos '80 com "O Príncipe Com Orelhas de Burro", "Os Abismos da Meia-Noite", "Os Emissários de Khalom" e "A Maldição do Marialva", premiado no Fantasporto de '90. O visualmente e narrativamente belíssimo "Chá Forte Com Limão", tornar-se-ia incompreensivelmente no seu último trabalho de ficção. Apesar das sucessivas tentativas ao longo dos anos, nenhum outro seu guião voltou a ser alvo financiamento estatal!

Com 19 anos conheci-o tarde, mas conheci-o, no mesmo dia em que fui apresentado ao seu trabalho, num ciclo de cinema dedicado a si no extinto Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz. Que choque, bom, muito bom, cinema daquele calibre guardado a sete chaves, à espera de ser redescoberto por uma nova geração. Fábulas com tom de verdade! Já há muito que não filmava, mas o fascínio, a visão e a paixão pelo contar das historias continuavam intactos. Não o deixaram voltar a filmar. Que crime! Tive o atrevimento de pedir a sua orientação nos meus dois primeiros trabalhos. Podia ter-me dito que não, mas o professor que havia em si tornava-o num missionário. Que privilégio.

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