São raros os casos em que um produto de ficção televisiva causa tanta controvérsia política, social e moral como “
24”, série dos produtores executivos Robert Cochran e Joel Surnow que já leva sete temporadas de vida. Denominado e classificado por vários como a face oficial do governo norte-americano na guerra contra o terror, Jack Bauer cativou milhões de admiradores em todo o mundo, desde o democrata Bill Clinton, ao republicano e candidato às últimas eleições presidenciais norte-americanas, John McCain, que pediu inclusive em praça pública para aparecer num episódio e falou abertamente sobre “24” numa ida ao programa do comediante Jon Stewart. Filósofos, teólogos, militares ou estrelas de cinema, ninguém ficou indiferente aos sacrifícios de uma personagem patriota, que coloca a defesa e a segurança do seu país no topo das suas prioridades, mesmo que tal traga desgraças irremediáveis à sua vida. Numa altura de profundas mudanças políticas na “terra dos sonhos”, importa agora explorar alguns contornos sociopolíticos do fenómeno televisivo e indagar sobre a (in)existência de limites morais na defesa de uma nação.
EnquadramentoA série que viria a revolucionar o panorama televisivo mundial veio ao mundo num dos períodos mais conturbados da vida e história norte-americana: dois meses após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Filmado e pensado muito antes desse fatídico dia, as ideias inerentes a cada temporada de “24” conseguiram sempre antecipar tendências ou desenvolvimentos reais, tal como se do futuro viessem. Dos aviões que explodem para assassinar o fictício presidente norte-americano, ao chefe de estado negro que surpreendeu tanto republicanos como democratas, Jack Bauer e a CTU – Unidade Contra-Terrorista – reflectem ainda hoje nos ecrãs de televisão dilemas e complexidades reais de uma luta contra ameaças terroristas em sociedades contemporâneas que se regem pelas virtudes do humanismo.
Fenómeno cultural complexo e multidimensional, “24” é ainda entretenimento de excelência, onde a carência de regras e clichés narrativos garante uma imprevisibilidade deliciosa, que não deixa ninguém a salvo de um final menos feliz. Numa era de incertezas, tentar compreender as acções de Jack Bauer torna-se num verdadeiro e original teste aos valores e às predisposições políticas e ideológicas do espectador. Serão os atalhos sombrios de Bauer para chegar à verdade aceitáveis perante uma nação em risco? Violência, tragédia, heroísmo, ambiguidade, causas e efeitos, vencedores e derrotados, tudo entra em jogo nos extensos dias da personagem de Kiefer Sutherland, também ele um actor que passou por um outro inferno – de drogas e álcool – num certo período da sua vida.
Veículo da direitaOs impulsos políticos de direita são claros e visíveis em “24”. Jack Bauer personaliza um vigilante no século XXI que sabota conspirações governamentais e está sempre preparado para promover o bem e extinguir o mal. Com a tortura como assinatura de marca – nem o irmão escapa -, as suas metodologias extremas quebram qualquer lei. Politicamente incorrecto – e marimbando-se para tal -, o instinto de Jack é a autoridade máxima, lei e ordem em caso de dúvida. Uma metáfora para as acções de guerra da administração Bush, dizem muitos comentadores políticos de vários quadrantes, aficionados pela série. No fundo, a criação fictícia de uma justificação para acções políticas tomadas durante longos anos de republicanos sentados nas cadeiras do poder.
Mas então e a admiração da esquerda?Mas se “24” é um veículo de divulgação das políticas de direita norte-americanas, porque razão figuras centrais da esquerda estão entre os mais fanáticos seguidores da série? A resposta é simples e não merece contestação: apesar dos desfechos crus e muitas vezes cruéis, em que os fins parecem justificar os meios, “24” tem o mérito de não disfarçar os dilemas que cada decisão de Jack Bauer levanta. Por isso mesmo, não é evitada a discussão pública e política em torno dos sucessos e fracassos de uma administração que só recentemente, e ao fim de oito anos, abandonou o poder. E há uma grande diferença entre Bauer e Bush: um é competente e triunfa em missão; o outro fracassou em todas as suas acções de âmbito planetário, causando danos irreparáveis na vida e na reputação de uma nação.
Feitiço contra o feiticeiroQuando Dennis Haysbert foi anunciado como o actor que asseguraria a personagem presidencial da série, levantou-se de imediato uma suspeição: os produtores executivos da série planeavam não só abrir uma janela até então fechada e que se julgava impensável – a de um presidente negro -, como também preparar uma sucessão republicana de Bush para o braço direito Colin Powell num futuro próximo, conseguindo assim o que Al Gore, vice-presidente do mandato de Bill Clinton não viria a alcançar alguns anos depois, em 2004. No entanto, o que acabou por acontecer foi que o “presidente Palmer” abriu não uma janela mas sim uma gigantesca porta para a viabilidade de uma inverosímil candidatura do senador Barack Obama, hoje o 44º presidente norte-americano.
Mensagem correcta?Numa cultura obsessiva – a norte-americana em específico mas também a ocidental em geral -, onde os direitos civis, bem como a filosofia moral do que é certo e errado pouca preponderância tem na educação, é interessante assistir à forma como “24” coloca a liberdade e a segurança de um povo num patamar bem mais elevado do que as regalias celebradas na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948. Da descriminação racial e religiosa à subversão do artigo quinto que garante que ninguém será submetido a tortura ou tratamentos cruéis e desumanos, nenhuma das morais que a série transmite é consensual. As mensagens transmitidas estão, por isso, longe do politicamente correcto. Mas a verdade é que também as políticas reais de um mundo caótico assim o demonstram. Portanto, mais do que incentivos deturpados, “24” aposta em provocações que resultam em dilemas repletos de emoção, que garantem audiências acima da média. Está à espera do quê para abraçar “24”?
Artigo publicado na edição 13 da Take Cinema Magazine.